quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Nihil V



- Gabi?
- Sim Bia.
- Você lembra daquela música que a gente cantava quando criança?
- Sim, claro.
- Ela começava assim...

Está abafado agora. Bem abafado.
Curioso porque quase todo tempo a sensação que se tem é de não haver clima. Não chove, não faz frio e também não venta nenhum assobio do tempo.
Normalmente só existe a neblina, sem nada o que ver e nada o que sentir.
Às vezes fico pensando se todos que estão escondidos em suas casas escrevem para si ou se ficam simplesmente olhando o teto, as janelas fechadas e os móveis vazios.
Talvez outros como eu tenham alguns dos seus para dividir a dor.
Ou talvez eu seja a única que não tem ninguém por eu ser a única em qualquer parte.

- Canta comigo, vai. Era tão divertido. A gente segurava as mãos uma de frente para o outro com os braços cruzados, isso, desse jeito, e no três a gente girava e...

Eu fico aqui tentando lembrar como tudo isso começou.
Não lembro se primeiro vieram as doenças ou as bombas.
Mas acho que o começo mesmo foi quando todos os animais nos abandonaram. Gatos, cachorros, pássaros...
Os que não fugiram morreram.
A água foi envenenada, disso eu lembro bem.
Lembro do Pedro quando saiu daquela caixa d’água onde a gente costumava tomar banho em dias quentes. Sua pele parecia descolar do corpo.
Seus olhos cheios de sangue imploravam por ajuda.
Ele não conseguiu gritar.

- Vai, não para de rodar.
- Eu não estou parando.
- Esta sim, sua molenga. Sempre foi molenga. Quando a gente era criança você não agüentava e era a primeira a cair
- Vai. Continua cantando...

Ah, Bia. Às vezes tenho a impressão de que se eu abrir a porta posso encontrar com a gente ainda criança brincando de amarelinha na rua.
E às vezes acho que você esta aí fora.
Doente esperando que eu cuide de você. Ai fora que é dentro dessa nevoa.
Mas não tenho coragem de sair.
Não tenho esperanças suficientes para acreditar que você, minha melhor amiga, esta viva em algum lugar.
Ah! Como eu sinto a sua falta.

- Haha. E sempre acabava assim lembra? Com as duas caídas no chão. Isso quando não quebrávamos nada antes.
-Verdade Bia. E meus pais ficavam furiosos. Te mandavam embora e me deixavam de castigo... E seus pais, o que faziam?
- Eles não olhavam direito pra mim.
- E agora?
- E agora o que?
- O que fazemos?
- Hora de fazer você morrer de cócegas.

O silêncio é sempre tão sepulcral aqui.
E aquela sensação de abafado esta mais clara agora.
Não é o tempo que está abafado, é a minha angústia que me tira o ar.
Foi sempre você que em qualquer tempo vinha até mim.
Me tirava do chão e curava as minhas feridas. E nunca o contrario. Nunca.
E eu ainda espero que você venha abrir essa porta.
Tenho racionado meu alimento comendo cada vez menos esperando você chegar.
Mas preciso dizer que todas as coisas gostosas acabaram.
Tudo agora tem o inóspito gosto de pó. Pó de solidão e velhice precoce como o meu coração seco.
E não importam quantas lágrimas eu chore inundando meu peito. Ele continua a ressecar.

- Ainda se lembra daquele dia no armário?
- É claro que lembro.
- Você sempre faz isso Bia.
- Isso o que Gabi?
- Me pega desprevenida.
- É que eu adoro o gosto de surpresa na sua boca.

Eu me alimento com suas lembranças como uma viciada em morfina. Preciso delas para superar a dor, esse medo.
Mas continuo vivendo, por desejar mais que tudo que você volte mais uma vez para me salvar. E me ajude a lembrar daquela música que cantávamos quando ainda éramos crianças e já não lembro mais.


 Às minhas amigas L, J e A.


Imagem:René Magritte - Madame Récamier de David

2 comentários:

  1. Só tenho a agradecer também!
    é uma coisa coisa coisa COISAAAA cheinha de talento, ou coisas boas, enfim, algo que o valha! Sabe quando alguem fala muito num filme, livro, ou vc mesmo cria expectativas com algo e sempre se estraga tudo ao ver, conhecer? Com ela NUNCA acontece isso, e é incrivel, mesmo que eu já soubesse, que saiba de tudo isso. Quero muito e tanto que em breve eu tenha livrinhos dela para ler no metro e fazer minhas viagens desse tipo bem melhores! Parabéns, sempre!

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  2. O que dizer? Os Nihil são os meus favoritos até o momento, sempre surpreendem, dão movimento, inspiração!

    Bem, esse me lembra um trecho de uma musica do Legião (Sempre Legião ou Nietzsche eu sei rs) Que diz: "SE o mundo é mesmo parecido com o que vejo, prefiro acreditar no mundo do meu jeito".

    A fantasia nos traz uma esperança onde o desespero é quase absoluto. Como a flôr que surge do lixo.

    Esse Nihil também remete aos Nihil I e II, onde eram escritas cartas. Ainda estou apaiconada pelo Nihil IV, mas esse também é incrivel. E, você sabe sou apaixonada por temas que remetem a morte, principalmente envolvendo a mistura de fantasia e realidade num nível em que quase não se é possível distinguí-las.

    A morte no Nihil IV também me pegou de jeito, ela sempre me seduz.

    Parabéns, ansiosa pelo próximo.*-*

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