quinta-feira, 21 de julho de 2011

O Despertar



Manhã de Domingo.

Hoje as coisas estão diferentes, você sorriu pela manhã e foi gentil, eu vi seu sorriso se perder no infindo céu que seus olhos miravam cheios de ladrilhos da luz da manhã, sua voz soou como um veludo rosa e macio.
Seus ombros estavam perfumados quando você me abraçou e depois de muitos anos você me disse "Eu te amo". E eu pensei que novos rumos seguia o seu coração?
A manhã vibrava pela janela, era domingo e todos dormiam até mais tarde, lá fora só o barulho dos pássaros, poucos, mas eles estavam lá cantando a sinfonia do sol. Nenhum vento soprava, nenhum carro passava na rua, a música da manhã de domingo era o silêncio, a calmaria era palco para a sua luz, e comecei a amá-la novamente. Senti vontade de acompanhar seus passos enquanto rodopiava pela cozinha com seu copo de leite, cantarolando algo num volume quase imperceptível, só um murmúrio.
Os raios de sol eram reluzidos nos azulejos e nas grades da janela... grade. Um louco pensamento passou pela minha mente: um pássaro aprisionado canta até sua morte para o horizonte que não lhe pertence, enquanto um gato aprisionado agita-se, ferozmente defende-se e com suas garras prende a face de seu ameaçador, nasce o sangue e escorre pela pele do rosto.
Volto meus pensamentos para você, eu lhe olho e sua imagem se distancia enquanto seus pés descalços circulam dançantes e envolventes, o domingo vai tomando forma, lá fora já se ouvem as crianças rindo, na casa ao lado a mãe esta pondo o café na mesa, ouço o pai espreguiçando, as crianças correm de chinelos para a frente da televisão.
Você encosta-se à mesa e espedaçando em pequeninos pedaços o pão com os dedos, você saboreia como se provasse ambrosia.
Deus..., esta noite sonhei que vi Deus, ele segurava minhas mãos e ninfas dançavam ao meu redor, elas voavam como você parecia voar, a noite foi quente e acho que tive febre. Pensei ter visto sua mão enxugando meu suor, sua respiração quente estava no meu rosto. Não! Acho que sonhei tudo aquilo! Ou não acho que sonhei. Tive a impressão de ter visto olhos de uma coruja na janela do quarto, a noite estava quente e no meu sonho você trazia uma bacia cheia de água para fazer compressas em minha testa, seus olhos lacrimejavam e você pedia para que eu não ouvisse a canção das ninfas e nem tirasse os olhos dos seus, você estava chorando, você pedia para que Deus não me levasse agora, não, não naquele momento, por fim você sussurrou e pediu-me ao ouvido: "não vá".


O Lugar dos Sonhos.

Eu caminhava por uma casa escura cheia de cantos, sentia o cheiro de sangue e ouvia um choro, porém, distante de onde eu pudesse estar. Andei quase em círculos, na sensação de caminhar por corredores e cômodos intermináveis pela casa perseguindo o choro, andei entre as paredes velhas feito o caminho de um labirinto grego, as portas se abriam para meus passos e a noite cantava com o soprar do vento uma melodia apavorante. Sentia muito frio, porém o suor quente escorria em minhas costas incessantemente. Ao desbravar um longo e funesto corredor, cheio de musgo nas paredes rachadas, onde também havia um carpete manchado ao chão e rasgado por algo que me pareceram garras, eu ouvi o cantar, o gorjeio da coruja em minha mente. Tive medo como uma criança apavorada. Pude sentir espinhos cortando meu ventre e o frio na espinha gelar cada osso de meu corpo, o corredor se prolongava infinitamente. Por mais que eu corresse as cenas se repetiam ao meu redor. Não seguia direção alguma, direita ou esquerda, norte ou sul, para onde eu olhasse ambas as direções eram extremamente iguais. Eu era dominado pela nítida sensação de não haver saída. O choro continuava em algum lugar perdido, e talvez, só talvez, não tão perdido quanto eu.
E quando foi que eu vi Deus? Em algum lugar entre meu louco desespero e seu rosto, eu acho...
A escuridão aumentou e se pôs a sufocar-me. Minha visão turvou e naquele momento as ninfas chegaram até mim. Com seus flancos cálidos e grandes asas, com a voz das sereias e a melodia do céu, tudo se apagou por completo quando, finalmente, veio a clarear minha visão o brilho letárgico da Lua. A paisagem vindoura doutra coisa não poderia ser que feita do que de sonho.
Quando a calmaria tomava forma, e meu corpo parecia acalmar-se, um novo calor começava a encher meu peito, sua voz voltava a mim vinda do céu, tive um sopro de esperança no peito, algo que de dentro da escuridão de meus sonhos mais profundos renascia, surgia do ébano em que eu vivia mergulhado, da indiferença dos meus dias, eu havia me tornado um observador que assiste complacente sua vida passar feito um filme do qual nenhum clímax é aguardado, eu via como vê um soldado cansado de lutar, todos os seus esforços serem desnecessários, quando sua medíocre existência torna-se um fato tão verdadeiro e repulsivo, mas que como um verme se agarra a seu ultimo fio de vida, de uma maneira ou de outra, não tem coragem de morrer e nem vontade para seguir, aguardei uma sensação daquele porte por muitos anos, e não é que ela veio-me em um sonho?
Pois em fim, quando a calmaria começava a tomar conta de minha noite eis que surge como um furacão, como uma tempestade em alto mar, balançando meus alicerces e dominando minha direção, a gritar em meu peito uma dor tão forte e devastadora, minha garganta rasgava-se amarga, estava cheio de angustia de um momento para o outro, o que eu via e ouvia teria a ver com a casa onde estive alojado, vi a face sombria da casa se erguendo majestosamente por trás de uma colina. O canto das ninfas se afastava cada vez mais de meus ouvidos, a visão turvou mais uma vez e quando pensei que estaria caindo num desmaiou súbito algo me fazia caminhar para a mesma direção da qual creio ter fugido por tão dificultoso caminho.
Como se tratou de um pesadelo, grande parte, talvez a parte mais excitante da história, tenha ficado perdida no meu inconsciente louco e quase desumano (um bom tanto devido à letargia).
Fui, pois o choro voltava a chamar-me e eu não poderia abandonar, não, não agora.
Atravessei a passos largos a desnuda floresta desprovida de luz, bosque que, ao notar minha passagem as pressas por seu interior sombrio, irou-se de minha pressa e fez soprar sua ira em ventania para tentar impedir meu andar deveras corajoso perante a imensidão de suas negras nuvens de galhos cecos, quebradiços e ásperos. Veio a roçar em meu rosto primeiro algo que muito me pareceu um lábio cruel e peçonhento, asqueroso, escorregando sobre meu corpo como uma pele escamosa e fria. Senti um forte nojo tão tremendo que náuseas reviravam-se com furor em meu estômago, esfriando-me a espinha e gelando-me o sangue. Meus pés se afundavam em alguma espécie de lodo negro, o farfalhar das árvores assobiava meu nome com uma espécie de voz metálica estridente. Reverberava em meu peito a sensação mais angustiante de toda minha vida, lembro-me de ter posto a mão no coração e não senti-lo bater, num momento de desespero total parei e coloquei o pulso a frente das narinas, nenhum ar saia ou entrava em meu corpo.
O que me fez voltar a mim e desvencilhar-me daqueles tentáculos deveras tenebroso, foi o choro angustiante que me deu forças para retomar meu caminho e ir buscar sua fonte penetrada em minha mente cheia de angústia dos sonhos mortos dantes vindouros.


Minhas Perdições

Segui incansavelmente, quase a arrastar-me, por entre a floresta (peço perdão aos meus mais profundos credos e sentimentos de fé, que me voltam a florescer como margaridas após décadas de truculentos invernos, pois tenho medo de nesse tentar dar cronologia ao sonho eu possa vir a maculá-lo e com ele aqueles seres nos quais deposito minhas crenças) quando previa um fracasso tremendo, dançando acima de mim as ninfas voltavam à sua melodia, belas, eu não as odiava, as temia um pouco, mas odiar, não poderia chegar a este ponto, dotadas de uma beleza sem igual, podendo ser tão lascivas e puras como nenhuma imaginação sonhou pensar, nenhuma imaginação humana é claro! Elas queriam me mostrar alguma verdade, mas eu não queria enxergar, e por mais que a curiosidade me incitasse e a dor, e certa excitação demoníaca, me fizesse pender a cabeça, num murmúrio de sufocante misericórdia eu continuei. E não cedi somente devido aquele choro que me causava ainda mais dor do que as dores que as provações me faziam passar. Mas enquanto as ninfas dançavam ao meu redor, o cheiro podre, a ânsia, aquele lábio peçonhento roçando no meu rosto, tudo continuava, e o escuro era cada vez mais denso.
Arrastei-me ainda por aquele ébano durante horas a fio, e quanto mais eu me demorava em minha jornada mais angustiante ficava o choro.
Quando a luz da lua voltou a pairar sobre mim e sobre a mata, vi tentáculos como de grandes lulas se desligando de meu corpo num deslize causando-me maiores náuseas, quis vomitar os meus órgãos um a um. O horror dominava a minha visão. O caminho que deveria me guiar colina acima era construído por esqueletos, muitos ainda conservavam vestes e cabelos, o cheiro podre era provido de dejetos de carne que ainda não estavam totalmente decompostos. Forçando os olhos, me era possível ver vermes ainda corroendo e dançando pelo pútrido cenário, as luzes do casarão piscavam falhas descobrindo a cada instante um novo olhar para um canto putrefato entre o balouçar das árvores naquele canto mórbido que gritava a noite. Por entre aquele absurdo de turvações ouvi o piar de uma coruja, busquei-a arduamente com o olhar, a desgraçada mirava em meus olhos do telhado daquela casa maldita.
Pensei em desistir, quis voltar, deixar-me levar pela musicalidade das ninfas, mas era impossível, por mais fácil que fosse fazer o caminho de volta eu não queria ver luz alguma.
Enraizando meus pés no chão úmido e frio eu retornava meu caminho para o antro de minhas perdições. Macular minha alma naquele sofrer ingrato. Os céus se colocavam a rir de mim, malditos, desgraçados, nuvens vinham se arrebentando cada vez mais sobre a casa entre raios, e sobre o telhado, entre as cinzentas nuvens, rostos cadavéricos e esqueléticos formavam-se. Riam incansavelmente entre os trovões, mas não havia chuva. Devasta aparição de um pesadelo.
Desesperado, eu reuni as forças que já não acreditava mais possuir, estava quase louco e foi o olhar penetrante da coruja que me fez seguir furiosamente. Ela me desafiava. Várias vezes escorreguei em braços dos cadáveres para posteriormente agarrar-me em algum outro dejeto. Nada me importava mais, só precisava encontrar aquele choro. Sei que parece estranho, mas num sonho tudo é real e eu perseguia aquele choro como se lutasse por minha própria vida: Instinto.
Quando obtive êxito chegando ao topo da maldita colina, olhei para baixo tentando trazer de volta meu equilíbrio. O bosque do qual eu fugira, na verdade, era uma parte de uma grande floresta que me pareceu muito mais perigosa do que qualquer coisa que eu tivesse visto ou sentido, perderia a conta ao tentar medir a densidade do pântano, a quantidade de corpos, os tentáculos pegajosos, ou as tantas árvores decrépitas e seus outros espinhos muito provavelmente venenosos de suas rosas negras – sob ainda o orvalho cintilante e quase angelical. Assim, voltei-me para frente da casa.
Ao agarrar-se à vida sobre qualquer pesar e passando por cima de tudo que queira lhe impedir nem sempre a sensação ou o resultado é inicialmente satisfatório.
Como sou um ser humano limitado e incapaz de realizar ou descrever a maior parte do que penso, quem dirá do que sonho, assim me conformo em tentar inutilmente trazer alguns poucos vestígios à luz .
Uma claridade surgiu por detrás da casa e cegou minha visão, de olhos exprimidos e lutando contra a luz entrei novamente na casa.
Ah, eu gostaria agora de ser um Anjo e falar mil línguas para achar numa palavra o que vi e o que senti. Nego-me ferrenhamente a acreditar que minha mente superficial e falha seja a única responsável pelas criaturas bestiais que residiam naquelas salas e corredores, talvez se eu fosse um gênio e minha mente estivesse acima dos outros mortais eu acreditasse que tudo não passou de imagens criadas pelo meu subconsciente e libertadas naquele instante. Se eu fosse um louco, eu poderia crer que nenhuma razão realmente é o elemento necessário para dar luz a tantos demônios. Queria também poder crer que estive entre a vida e a morte, e eu escolhi viver, mas sou completamente leigo a tudo que diz respeito à vida no "além", assim como não possuo nenhum conhecimento sobre qualquer religião ou doutrina que me viesse a provar esta ou aquela parte de meu devaneio concebido.
De qualquer modo, é possível descer além do desespero? Eu já não raciocinava mais, não era ao menos instinto, impulsos bestiais, e apenas uma ajuda eu obtive: a coruja. Irônico, o ser que achei guiar-me para a perdição trouxe luz para minha jornada. Ela levou-me rapidamente pelo meu pesadelo e mostrou-me portas que estavam escondidas nas sombras e curvas. Havia sido tomado apenas pela adrenalina.


À Vida

Bom, neste momento acho que nem é mais necessário descrever quem chorava. Voltei por ela, sai triunfante, sangrando, arrastando uma das pernas e com dores que atravessam a barreira do sonho e que, enquanto estou sentado aqui, à mesa do café, ainda sinto as pontadas e pequenas convulsões, mas sai triunfante com minha mulher ao colo. Mais lívida e encantadora que qualquer ninfa luxuriosa e mais forte em sua doçura que qualquer tentáculo escroto.
Feito pássaro aprisionado ela cantou em choro, e eu como um felino debulhei-me em um luta feroz.
Creio que minha esposa possa ter passado realmente a noite ao meu lado fazendo-me as compressas e talvez mergulhada em choro, mas não ousarei perguntar nada sobre o que aconteceu, quero crer e quero que ela acredite que não me lembro de nada e que ela voltou para mim pelo o impulso do simples frescor da manhã de domingo. E pode agora dançar descalça nessa sua valsa de ter voltado a me amar.
Quando acordei, ela estava adormecida ao meu lado com um dos braços sobre meu peito apertando firmemente a blusa de meu pijama, parecia cansada, mas seu rosto estava lívido e cheio de luz, sua boca semi-aberta respirava profundamente e seu peito enchia-se com o ar que ela respirava enquanto recostava a face em minha nuca e seus cabelos espalhavam-se bagunçados pelo travesseiro. Mesmo com todo mal estar que sentia e mesmo que isto pareça por de mais um clichê, eu me senti feliz. Quanto a meu sonho, a última visão que tive foi daquela luz forte, translúcida cheia de vultos brancos flutuantes. Onde eu a encontrei, bela como jamais tinha estado e apaixonada como foi (e como eu fui) a muitos anos atrás.
Mas chega! Eu sou incapaz de descrever aquilo que em algum lugar de minha quase perturbada mente acho ser Deus. E sendo que também me afastei dele, e só agora eu quis voltar.
Estranho a vida recomeçar em uma manhã de domingo...
E enquanto lhe observo diverti-se com o degustar de seu pão e leite, eu queria poder lhe falar como agradeço você estar comigo, como sou grato por você ter permanecido ao meu lado todos estes anos e ainda ser tão solicita e descobrir-se apaixonada por mim. E mesmo se não for verdade que estive quase a desfalecer, mesmo que luta nenhuma eu tenha travado para voltar, eu gostaria que você soubesse que foi apenas porque você murmurou-me: "não vá." que eu despertei esta manhã.


* Imagem: Obra de Rene Magritte.

3 comentários:

  1. Existem momentos em que um artista se supera. Talvez em termos mais adequados: se complementa.
    Acredito que, nesse conto, esse seja mais um desses seus momentos, Carol.
    Fico feliz.
    Parabéns.

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  2. Obrigada. Sua opnião sempre é muito importante. Obrigada realmente.

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  3. Caaaa!!!Perfeito!!!Me emocionei!!Qdo for escritora famosa não esquece dos amigos, vou querer um livro autografado!!!Um abraço minha amiga
    Laine

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