terça-feira, 29 de julho de 2008

Nihil I

Feche a janela meu querido
Não há nada para ver lá fora, não há nada para ver.

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Perdi a conta dos disparos lá fora

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Perdi a conta das suas lágrimas.

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Perdi a conta dos corpos.

Feche a janela, eu já disse querido. Feche a janela! Não há nada para ver lá fora.

Nihil:
As janelas não abrem e o rádio não toca nada, não fazemos mais músicas, os cães não latem já tem alguns meses, sim, alguns meses.
O dia inteiro é só a fumaça, a fumaça cinza e mal cheirosa das ruas.
Os dias e as noites estão indefiníveis, eu conto os dias pelas voltas do relógio.
A Ana, já faz um tempo, não tem mais mamado do meu leite, e Paulo não brinca mais, ele não ri mais.
Miguel não consegue desviar sua atenção da nossa palidez, ele sempre me lembra que quase nenhum sangue nos cora.
Ao menos, ainda tem o barulho rangedor de minha cadeira de rodas para nos lembrar de que ainda estamos vivos.
Estar em qualquer outro lugar, seria como estar em qualquer outro lugar.
Quando a fumaça começou e tantas cinzas vinham com o vento, eu acreditei que Deus estava nos abandonando.
Hoje Paulo disse: “Deus não existe”.
Eu não consigo acreditar que vocês vão voltar, eu também não acredito que um dia essas cartas chegaram a vocês.
Antes, eu ia até a praia colocar as cartas em garrafas.
Hoje as portas não abrem, e mesmo se elas abrissem, elas dariam para esse mesmo cinza que tem aqui dentro.
E eu empilho as cartas para passar meu tempo.
Fizeram tantas revoluções, defenderam tantas idéias e pra que? Pra que se minha pequena não toma meu leite?
Nós estamos morrendo, e nosso passatempo é medir a evolução de nossa degeneração.
Devoramos livros para debochar de seus autores.
Apelidamos Beckett de Nostradamus, e estamos rindo. (Eu e Miguel)
Sim, rimos porque não temos nada melhor para fazer.
Olha só: “Não há nada melhor para fazer”
Somos disformes.
O pai de Miguel resolveu sair, ele voltou sem um braço e metade de uma perna.
Agora ele está na banheira, mas isso também já faz algum tempo.
Assustar-se-ia com minha magreza e com a de todos nós.
Faz diferença?
Não. Nunca. Nada.
Parece que quando existiu sol e lua, eram sonhos.
Mas já chega, estou ficando cansada.
Escrever não é mais tão divertido.
Nunca foi.
Nunca nada foi.
Vou colocar óleo na cadeira de rodas, e jogar cartas com Miguel.
Esqueci de dizer, provavelmente estas letras saem tremidas, estamos quase no escuro.
As velas estão no fim, em breve, precisaremos queimar nossas roupas.
Com saudades, Lili.
Obs.: desculpe a frieza, mas o bombardeio lá fora não me deixa mais escrever poesias.

3 comentários:

  1. Que se fazer do talento?
    Rancar lágrimas de poetas. Bravo talento, que num breve elogio abreviam-se essas cartas.

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  2. Muito bom esse também. Um de meus preferidos.

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  3. Esse é o fim da linha, o que dirá o Nihil 2? E o 3 e o 4?
    Vamos lá, amiga linda e poética!

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