sábado, 27 de novembro de 2010

Nihil IV




- São dois cigarros.
- Eram três cigarros. Tenho certeza.
- E vamos ficar aqui contando cigarros?
- E respirando fumaça e soprando as cinzas que caem sobre a mesa... Eu tive um sonho Jô.
- Não pode ter tido Iza, não pode.
- Eu sonhei, lembro bem, não podia ser real...
- O que não podia ser real? Esta maluca? E você, aliais, não podia ter sonhado.
- Eu sonhei, te digo que sonhei. E o que não pode ser real?
- Qualquer coisa pode ser real Iza, qualquer coisa. Olhe para nós, o que você vê, parece real?
- Eu entendo o que você diz, mas era diferente...
- Diferente como? Eu de olhar para seu rosto enxergo seus ossos. E seus olhos assim como os meus já perdem a cor. Não há energia, você entende isso? E nem sei como ainda estamos vivos sem nem ver mais a luz do sol, sem nem saber mais se é dia...
- Ou se é noite. Já ouvi você dizer isso cento e trinta e duas vezes, pois eu contei, anotei todas. E digo que era diferente, por isso foi um sonho.
- Cento e trinta e duas vezes? Você realmente não tem o que fazer Iza.
- Eu anotei, fiz um risquinho no meu caderno para cada vez que você disse “nem sei como ainda estamos vivos sem nem ver mais a luz do sol, sem nem saber mais se é dia ou se é noite.” E anotei todas as vezes que você já disse “Eu acho que devíamos queimar os livros de uma vez e acabar com essa angustia de morrer aos poucos”, foram setenta e três vezes, também anotei quantas vocês você diz que me ama, quantas vezes você ameaçou se matar e o número de dias em que ouvimos bombardeios, e o número de dias em que o silêncio nos dominou...
- Sim, Iza, eu entendi, você tem tudo anotado.
- Sim, Jonas, por isso eu disse que eram três cigarros e não dois.
- Ah, eu não me importo, eram dois, e nisso você esta errada...
- Não estou.
- Está!
- ... Mas eu te disse que sonhei.
- Não sonhou Iza, não sonhou, não pode ter sonhado, ninguém sonha.
- Eu sonhei, e isso pode ser um motivo para ter esperança, não pode?
- Pode. Poderia... mas não pode, porque você não pode ter sonhado.
- Eu sonhei... na verdade Jô, foi um pesadelo.
- Diga de uma vez...
- Eu sonhei, sonhei que nós fazíamos amor.
- Isso é um pesadelo? Mas de fato, isso parece bem improvável de ter acontecido, mas ainda não acredito que você sonhou, deve estar inventando.
- Não estou, presta atenção, me deixa continuar. Depois que nós fizemos amor, e era lindo, você ia para o banheiro e se matava. Se matava e eu só via depois. Viu só?
- Vi o que?
- Como é impossível. Primeiro porque é impossível que nós façamos amor, e segundo que é mais impossível ainda que você um dia, cumpra suas promessas de suicídio e me deixe sozinha.
- Porque você acha impossível que eu lhe deixe sozinha?
- Porque você me ama Jonas, só por esse motivo.
- Entendi... mas ainda acho que você esta inventando que sonhou. Você bebeu ontem?
- Bebi, e o que importa?
- Importa que você pode ter imaginado, talvez porque queira muito fazer amor, e porque queira muito que eu me mate.
- Oras, não fale besteira Jonas. Eu não quero que você se mate... Veja só...
- Mas você queria fazer amor comigo Iza?
- Queria, queria sim, antes do meu sonho eu queria mais, agora nem tanto...
- Talvez você tenha medo que eu me mate depois...
- É, pode ser isso sim.
- Mas você bebeu muito ontem?
- Bebi, já disse que bebi. Meia garrafa.
- Meia garrafa?
- Meia garrafa de vodka três vezes.
- E porque você bebeu?
- Porque queria fazer amor com você...
- ... Entendi....
....
- Iza?
- Diga...
- Porque nós não fazemos amor?
- Porque você não pode Jonas, não lembra? Você se envenenou com a fumaça e a água do rio aquela vez, e desde então, você não pode mais fazer amor...
- É mesmo... Iza, mas eu ainda duvido que você tenha sonhado. Ninguém sonha.
- Ah... tudo bem, você não quer acreditar em mim, tudo bem. Vou ficar sozinha com a minha esperança.
- Quer que eu lhe acenda outro cigarro?
- Quero. Você não quer?
- Não agora, gosto de respirar a sua fumaça pra esquecer a fumaça de lá de fora, é uma forma de você me pertencer.
- Então acenda logo meu cigarro Jonas.
- Aqui está.
- Sabe Jonas, eu sempre gostei dessa fumaça.
- É, eu sei.
- É, você sempre sabe.
- Isso mesmo. Eu sempre sei ... Iza, você viu o Leo ontem?
- Não vi, dormi logo e sonhei com você.
- Estranho...
- É, estranho...
- Vou ao banheiro.
- Ok.
...
- Iza, venha ver.
- O que houve querido?
- O Leo se matou no banheiro.
- Se matou...?
- É... Iza, você bebeu meia garrafa ontem?
- Sim, bebi meia garrafa de vodka três vezes.
- Três vezes... E você não tem mais tanta vontade de fazer amor comigo.
- È... não tenho.
- É... não tem... Nós fizemos amor no escuro, Iza?
- No meu sonho fizemos.
- Sabe Iza, eu disse que você não poderia ter sonhado.
- É mesmo Jô. Parece que não... que não sonhei...
- Melhor eu me sentar ai à mesa com você de novo.
- É... é melhor... E o que vamos fazer?
- Não vamos fazer nada Iza, não vamos fazer nada. Eu vou ficar aqui olhando para a sua palidez e para os seus ossos e você vai ficar ai olhando para mim, é só isso.
- É só isso mesmo, ao que parece...
- Agora, você vai se convencer de que havia dois cigarros?
- Não, querido. Eu anoto tudo, havia três.

Um comentário:

  1. Li, os quatro Nihil, em ordem.
    Você escreve maravilhosamente bem.
    Depois vou ler os outros textos.
    Beijos, amiga.

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